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    Telhados de Tesoura em Goa

    Telhados de Tesoura em Goa
    Goa

    I - Introdução

    No quadro da arquitectura desenvolvida pelos portugueses no Oriente, os telhados de tesoura constituem pela sua originalidade, uma temática particularmente interessante, testemunhando uma capacidade de adaptação das práticas construtivas e da cultura portuguesa face a novas situações. Neste estudo pretendemos apurar de forma consistente, os processos de formação assimilação e circulação  que envolvem a tipologia de telhados de tesoura[1]. Caracterizando-se por um sistema de cobertura de quatro águas com pendentes muito inclinadas, o processo de formação destes telhados tem suscitado muitas interrogações quanto à sua origem, bem como quanto à sua posterior circulação nos territórios de influência portuguesa. O debate foi iniciado por um notável artigo de Orlando Ribeiro com o título Açoteias de Olhão e Telhados de Tavira, (Ribeiro 1992) que se mantém, ainda hoje, como o texto de referência sobre este tema. Partindo dos telhados múltiplos de quatro águas de Tavira, Orlando Ribeiro analisa outros casos em cidades portuárias em Portugal e nas costas Africanas, como é o caso de Luanda, filiando a origem desta tradição nos telhados de Goa. Por semelhança com as morfologias dos telhados dos templos hindus, Orlando Ribeiro fundamenta a origem deste sistema na arquitectura indiana, sem no entanto desenvolver a problemática da cronologia da sua formação nem das tipologias arquitectónicas onde se integravam.

     

    Fig. 1- " Pormenor de Baçaim. António de Mariz Carneiro in  Álbum Descrição da fortaleza de Sofala e das mais da India, Lisboa, Biblioteca Nacional. Ed. Fac-simile Pedro Dias, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1991

    [1] Optamos aqui pela designação de tesoura e não tesouro por considerarmos a primeira ligada com o seu sistema de construção e o segundo termo uma variante popular circunscrita à zona do Algarve.

     

     

    II - Génese e primeiros modelos

    Na tentativa de estabelecermos uma cronologia para a formação desta tipologia de telhados, conseguimos identificar dois documentos datados de meados do século XVI, que nos permitem comprovar, não só, a forma precoce como se manifesta esta tipologia no Oriente, como, ainda, a sua rápida passagem a elemento típico da arquitectura goesa. Na realidade, em 1567, o padre jesuíta Gaspar Dias, em carta dirigida aos seus irmãos de Lisboa, assinalava a omnipresença destas estruturas na arquitectura da cidade de Goa, descrevendo: “…as casas têm os telhados altos e impinados a modo de curicheus que estão parecendo muito bem antresachados com os arvoredos, tem muita graça; assi a cidade como a ilha…” (Rego 1995 X, p.243). O carácter precoce com que estes telhados se impõem na imagem da cidade é comprovado igualmente na iconografia, onde registamos a sua presença de forma significativa em meados do século XVI, num desenho do Livro de Lisuarte de Abreu [1]. Na representação da Barra do Mandovi, recortam-se dois conjuntos arquitectónicos na zona de Betim e Reis Magos, assinalados ambos pela presença destacada destas estruturas. De acordo com a lista dos vice-reis e governadores mencionados no texto, os desenhos terão sido elaborados pelos anos de 1563-1565. Em contraponto com o Livro de Lisuarte de Abreu, esta tipologia de telhados é completamente ausente na obra de Gaspar Correia, Lendas da Índia (Correia [1995]) em que as fortalezas e povoações expostas correspondem a uma primeira fase de instalação dos portugueses na Índia. A partir desta obra, onde as representações de Diu e de Cananor se destacam pela sua notável precisão, podemos comprovar que os telhados de tesoura são omissos só aparecendo numa segunda fase de instalação dos portugueses no Oriente. Deste estudo podemos concluir de forma fundamentada que os telhados de tesoura correspondem a uma adaptação a novas condições ambientais e acomodação a uma retórica arquitectónica indiana marcada por um forte pendor simbólico que tende a enfatizar os elementos arquitectónicos. Para além da sua função estética e semântica estes tectos formavam um sistema de refrigeração nos espaços interiores. Por diferença de temperaturas, o ar das salas tinha tendência a formar uma corrente de ar contínua, entrando  pelas janelas e subindo até ao alto do tecto. O sistema de colocação das telhas em escama permitia, por sua vez, a saída do ar quente que se alojava no alto, junto ao telhado.

             

    Fig. 2, 2A  - " Pormenor da Barra do Mandovi em Goa in Livro de Lisuarte de Abreu. C. de 1563-1565. Desenho a tinta-da-china e aguarela. Biblioteca Pierpont Morgan Nova Iorque, Ms. 525.

    Fig 3, 3A e 3B - Pormenores do casario de Diu, Cananor e Coulão. Gaspar Correia, in Lendas da Índia

    [1] BIBLIOTECA Pierpont Morgan, Livro de Lisuarte de Abreu. Nova Iorque, Ms. 525.

     

     

    III – Escala e acentuação simbólica

    O estudo da iconografia de Gaspar Correia com representações das primeiras povoações construídas no Oriente pelos portugueses, comprova a inexistência de telhados de tesoura nestas povoações, permitindo-nos concluir que esta variante não tem origem europeia mas que tem a sua génese e desenvolvimento em contacto com a realidade da cultura arquitectónica indiana. Dos nossos estudos o surgimento destas estruturas acompanham uma tendência para uma forte acentuação da dimensão simbólica não só da arquitectura como dos mais variados comportamentos sociais que tendiam a assumir uma forte carácter ritualista e emblemático. Devido à preponderância que as actividades  militares assumem na vida social dos portugueses na Índia, esta acentuação simbólica revela-se, na arquitectura civil por uma valorização de elementos que pudessem ser entendidos como sinais da classe guerreira - shátria - e que cremos constituírem um elemento fundamental para o entendimento do fenómeno da arquitectura civil indo-portuguesa e dos telhados de tesoura.

    A um nível mais iconológico, a vincada inclinação destes telhados provoca uma enfatização da cobertura no desenho do edifício, seguindo uma tendência estética de toda a arquitectura indiana. Mais evidente na arquitectura erudita, as coberturas dos templos e palácios tendem a assumir uma maior expressão formal e uma forte proeminência, em desfavor das paredes, que se apresentam como elementos menores nas morfologias e tipologias arquitectónicas. Salientando um entendimento muito peculiar da arquitectura, os tratados de arquitectura hindu, caso do Mayamata (Gagens [1970-1972]) ou do Mansara ( Acharya 1998), são omissos quanto ao desenho e aos elementos de composição das fachadas, dedicando, em oposição, uma particular atenção às coberturas dos edifícios. Conforme a sua forma, subdivisão em patamares e remate superior, a cobertura dos edifícios destaca-se nestes tratados como um indicador fundamental da importância de um templo e respectiva tipologia arquitectónica. Verificamos assim que, para além de uma resposta funcional ao clima, os telhados de tesoura respondiam a uma lógica de matriz indiana, orientada para a acentuação dos valores simbólicos, que na arquitectura civil se revelava como uma afirmação de supremacia e nobilitação. A importância particular que cada elemento devia assumir, quer fosse: portal, telhado, escadaria, varanda ou torre, implicava, por sua vez, um significativo aumento de escala de todos os edifícios. Igrejas, palácios, conventos ou hospitais sofrem progressivamente uma  mutação de escala em relação aos modelos de referência europeia. Este aumento de escala e preocupação na acentuação da carga simbólica dos elementos formais vai dotar toda a produção arquitectónica dum aparato decorativo e de uma monumentalidade sem paralelo com a arquitectura produzida noutros lugares do Império.

     

          

    Fig. 4 e 4A –Baixo relevo com representação de Jerusalém ( Goa) Painel lateral do altar mor da Igreja de Nª Sr.ª do Rosário, Damão, India

    Fig. 5, 5A -  The English Fort of Bombay (antiga casa do Governador de Bombaim) in Philip Baldaeus A True and Exact Description of Malabar and Coromandel, London, 1702, vol. III, p.602

    Fig. 6 - Casa dos Catecúmenos em Betim. Goa. Fotografia Sousa e Paul. Finais do séc. XIX.

     

    Coroadas por tectos altíssimos em forma de pirâmide, os edifícios adquiriam uma forte vibração e monumentalidade, contribuindo para criar uma imagem de poder e dominação face a um território pontuado por um largo conjunto de reinos e impérios com quem Portugal mantinha constantes conflitos e guerras. Neste aspecto é particularmente significativo a representação de Jerusalém num baixo relevo na capela mor da igreja do Rosário de Damão dá-nos uma imagem da arquitectura da cidade de Goa. No conjunto podemos vislumbrar o Palácio da Fortaleza dos Vice-reis com em segundo plano o Palácio do Sabaio e ainda ao lado a cúpula da Igreja dos  Caetanos. Um outro caso destas estruturas fora da Goa é registada na obra de Philip Baldaeus A True and Exact Description of Malabar and Coromandel, onde a antiga casa do governador de Bombaim nos fornece uma clara ideia da importância dos telhados de tesoura na arquitectura.

    A par de uma função simbólica os telhados de tesoura tinham, ainda, uma função pragmática, servindo de ventilação e refrigeração do ar interior dos edifícios Na realidade o pé direito muito alto e piramidal tendia a fazer elevar o ar quente criando uma corrente de ar que refrescava os interiores. Integrado neste sistema de cobertura encontramos nas grandes casas goesas as janelas de sacada com as portadas divididas sensivelmente a meio. Esta divisão permite a abertura apenas da zona inferior das janelas facilitando a entrada de ar em baixo e criando uma corrente de ar ao subir para o alto. Como complemento deste sistema, os forros dos tectos eram vazados num sistema de treliças ou grelhas que facilitavam a circulação do ar e a sua passagem para o exterior pelos interstícios das telhas.

     

     

    IV – De Goa a Damão e a Colombo

    Do século XVII as referências iconográficas sobre a arquitectura e as morfologias urbanas são abundantes mas de significado mais fluido e complexo. Referimo-nos aos desenhos incluídos nos vários álbuns com as cidades e fortalezas do Estado da Índia, realizados ou atribuídos a Manuel Godinho de Erédia[1], Pedro Barreto de Resende[2] e António de Mariz Carneiro[3] de que existem várias versões dispersas em diversas bibliotecas e arquivos. Na sua génese, estes álbuns tinham como principal objectivo fornecer uma visão sobre as condições geográficas e de defesa das povoações, assumindo a arquitectura civil ou religiosa uma importância secundária. Face aos outros autores, os desenhos de Pedro Barreto de Resende destacam-se, em termos das representações da arquitectura, pelo seu maior naturalismo e frescura de detalhes.

         

    Fig. 7 e 7A, Cochim com pormenor do casario  in  Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental. 1992, Évora, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital, Inv. CXV-2-1

    Como secretário do vice-rei, conde de Linhares, Resende teria visitado um número significativo de cidades e fortalezas distribuídas pelo território do Estado da Índia, tendo feito uma apreciação destes lugares através de um contacto directo. Os desenhos de Pedro Barreto de Resende, se, pela sua natureza, não pretendem uma transcrição precisa da realidade, fornecem, no entanto, uma imagem muito clara das tipologias arquitectónicas nas suas principais características. Neste sentido, em Mascate e nas fortalezas do Golfo Pérsico, a arquitectura é marcada pela presença sistemática de terraços de clara expressão árabe. Em territórios mais afastados de Goa, como Mombaça ou Macau, os telhados muito inclinados e em forma de bico desaparecem, não sendo característicos destas zonas. Igualmente nos arredores dos aglomerados urbanos como em Chaul, as casas de piso térreo localizadas fora do recinto muralhado da cidade são todas representadas sem telhados de tesoura. Na realidade, na arquitectura de cariz mais popular, constituída por edifícios com apenas um piso térreo, esta tipologia dilui-se. Diferentemente do quadro analisado para o século XIX, no panorama das representações de arquitectura realizadas por Pedro Barreto Resende os telhados de tesoura parecem não só nos palácios e grandes edifícios religiosos, mas na generalidade dos edifícios urbanos, constituindo-se como o seu elemento mais emblemático. Na circulação desta tipologia de telhados para fora da Índia, constatamos a sua divulgação no Ceilão a partir de uma representação de Colombo realizada por volta do ano de 1655[1], por um autor flamengo. Caso raro, trata-se de uma planta que se caracteriza por uma preocupação de representação realista da arquitectura da cidade, surgindo, os edifícios das ruas principais rebatidos em alçado, onde se destacam as casas de dois pisos com telhados de quatro águas muito inclinados. Digno de nota, nas casas de piso térreo os telhados surgem com inclinação comum, em sintonia com as morfologias arquitectónicas definidas por Pedro Barreto Resende.

      

    Fig. 9, 9A  Planta da cidade de Colombo e pormenor da rua Direita na cidade de Colombo. Anónino, c 1655, Arquivo de Hage, Maps and Drawings Departement, 4VELH, 619.155

     

    [1] The Hague, Arquivo do Estado, Maps and Drawings Departement, VEL 941. O desenho encontra-se reproduzido in Mar Liberum, Lisboa, nº13, junho de 1997, p.119

    [1] Deste autor existe na Biblioteca de São Julião da Barra, em Oeiras o álbum O Livro das Plataformas da Índia ed. Facsimile, intr. e notas de Rui Carita, Lisboa, Ministério da Defesa Nacional, 1999.

    [2] Os desenhos deste autor encontram-se anexos à obra de António Bocarro, O Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental. Évora, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital, Inv. CXV-2-1. Ed. Fac-simile introdução e notas Isabel Cid, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa Da Moeda, 1992

    [3] De António de Mariz Carneiro existe o álbum Descrição da fortaleza de Sofala e das mais da India, Lisboa, Biblioteca Nacional. Ed. Fac-simile Pedro Dias, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1991.

     

     

     

    V –Telhados de Tesoura no século XVIII

    Do século XVIII, podemos referir a presença do sistema de tesouras, nos levantamentos, tanto do palácio dos Vice Reis[1], em Goa como do Palácio da Inquisição. Embora circunscritos a apenas dois exemplos, estes palácios eram dois casos emblemáticos da arquitectura da cidade, sendo significativa a forma enfática e hegemónica como os seus telhados aqui se destacam. O facto dos levantamentos terem um caracter rigoroso permite-nos abordar uma questão relacionada com a inclinação dos telhados que atingem um angulo muito superior aos telhados de Luanda ou de Olhão. Este facto na nossa interpretação acentua o caracter original dos telhados goeses e a sua origem e formação no Oriente. Na falta de representações da arquitectura mais corrente da cidade, Placido Francesco Ramponi, no Diário da sua viagem a Goa, efectua uma descrição das casas da cidade de Goa entre os anos de 1699 e 1700, escrevendo; “...as casas têm um só pavimento sobradado,(…) no pavimento térreo vivem os servos e escravos negros e por cima vivem os patrões..…os telhados são em forma de bico e as telhas de barro vermelho são postas como escamas de peixe, o que não é desagradável de ver[2].

         

    Fig, 10, 10A, 10B - Corte e plantas do Palácio dos Vice-Reis em Goa, Índia. J.B. Vieira Godinho [Assin.], c.1770. Tinta-da-china com aguada. Ms.1185x433 cm. Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, Des. 6-e-5

     Fig. 11, 11A, 11B Planta do Pallacio em q se havia estabelecido o Tribunal do Santo Officio de Goa. 2ª metade do séc. XVIII. Tinta da china com aguada. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar. (GEAEM-DIE) cota 1222-2ª

     

    Igualmente da mesma época, os levantamentos do Palácio do Governador de Angola em São Paulo de Luanda[1], permitem sinalizar o percurso de divulgação desta tipologia nos territórios do Atlântico, coincidindo com alguns exemplares de edifícios do século XVIII com telhados de tesoura, localizados na zona da Baixa de Luanda e referenciados por Orlando Ribeiro. O levantamento assinado pelo Eng. Joaquim Monteiro de Moraes foi realizado durante o governo de D. Francisco de Sousa Coutinho de 1764 a 1772, correspondendo ao antigo palácio construído ao longo do século XVII.   

        

    Fig. 12, 12A,12B,12C Planta e pormenores do Palácio da Residência dos Ill. e Ex.mos Senhores Governadores de Angola. Biblioteca do Rio de Janeiro. Iconografia, ARC.

     

    [1] Biblioteca do Rio de Janeiro, Iconografia, ARC. 29,8.4(3)

    [1] Os desenhos encontram-se na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa

    [2] AZEVEDO, Carlos, “Um artista italiano em Goa – Placido Francesco Rampomi e o túmulo de São Francisco de Xavier”. In Garcia da Horta, Lisboa. Ministério do Ultramar, Número Especial, 1956,  p. 301.

     

     

    VI – Nas margens do Mandovi  

    Na iconografia do século XIX relativa a Goa e aos telhados de tesoura  destaca-se a sequência de vistas de Goa realizadas por José Maria Gonsalves[1] e datáveis da segunda década do século XIX. Neste conjunto das pinturas, o artista escolhe como pano de fundo as margens do estuário do Mandovi, onde ao longo dos séculos se foram implantando os mais importantes edifícios de Goa, colocando em primeiro plano os seus personagens, que aparecem assim associados a cenários de notório impacto visual. De forma muito original, tanto os fundos arquitectónicos, como os personagens destacados no primeiro plano, surgem com uma pequena legenda escrita num português pontuado de traços luso-goeses. Desta série de pinturas com paisagens situadas nas margens do Mandovi, chegaram até nós seis vistas da margem sul, e, três vistas da margem norte deste rio. Da margem sul, na zona mais retirada do interior, a série começa pela antiga aldeia de Daugim, onde vemos recortar-se ao fundo o convento da Madre de Deus e o Palácio de Recreio dos Vice-reis.

      

    Fig. 13 e 13A- " Pormenor de pintura com vista da aldeia de Daugim Goa. José M. Gonçalves. Inícios do séc.- XIX. Óleo sobre tela. Lisboa. Colecção particular

    Fig. 14- " Pormenor de pintura com vista da aldeia de São Pedro de Ribandar. Goa. José M. Gonçalves. Inícios do séc.- XIX. Óleo sobre tela. Lisboa. Colecção particular

    Avançando no sentido da barra, segue-se a segunda pintura, com a aldeia de S. Pedro de Panelim com um conjunto de grandes palácios com fachadas orientadas ao Mandovi, à direita a fachada da capela de N. Srª. da Piedade, e em cima o Palácio de Recreio dos Arcebispos. Como terceira vista, segue-se a pintura com o Hospital Real Militar, antigo Palácio e Casa da Pólvora, igualmente demolido no século XIX.

         

    Fig. 15, 16- " Pormenores de pintura com vista do antigo Palácio da Casa da Pólvora e da aldeia de Ribandar. Goa. José M. Gonçalves. Inícios do séc.- XIX. Óleo sobre tela. Lisboa. Colecção particular

    Na quarta pintura surge a aldeia de Ribandar, seguindo-se duas vista de Pangim. Numa primeira vista da cidade destaca-se o Palácio do Governo, à direita, e, no lado oposto, o Palácio dos Noronha. Na segunda vista de Pangim, representando a sua zona ocidental, destaca-se o casario da cidade de que emergem, à esquerda as torres da igreja da Nª. Srª. da Conceição, e, à direita, os palácios dos Soares, dos Almeidas e dos Ataide Teive, vulgarmente chamado dos Maquines.

    [1] Este conjunto de pinturas, realizadas a óleo sobre tela, apresenta-se reproduzido no livro do autor: Os Palácios de Goa - Modelos e Tipologias de Arquitectura Civil Indo-portuguesa. Ed. Quetzal, Lisboa.

     

     

    VII – Os desenhos de Lopes Mendes e o legado de Sousa & Paúl

    Reduzidos, hoje, a escassos exemplos, os telhados de tesoura, eram ainda muito comuns na paisagem urbana de Goa do século XIX, como nos compravam os desenhos de Lopes Mendes, realizados ao longo dos anos de 1862 e 1871 para a sua obra A India Portugueza (Mendes 1886). Embora sem grande precisão de traço, a forma sistemática como o autor registou edifícios, paisagens e costumes facultam-nos um panorama do património de Goa neste período.

           

    Fig. 17, 17ª, 17b, 17C. Palácio da Casa da Pólvora, Palácio de D. António de Carcome Lobo, Palácio do Governador em Pangim e Palácio dos Condes de Nova Goa, in Lopes Mendes, India Portuguesa. Nova Goa, Imprensa Nacional, 1886

    A análise do vasto conjunto desenhos de Lopes Mendes permitem-nos uma importante constatação sobre a evolução e história dos telhados de tesoura em Goa. Na realidade verificamos que os novos edifícios, como é o caso dos Paços do Concelho, da Alfândega ou do Quartel de Artilharia, com uma arquitectura de programa de edifícios tardo-pombalinos construídos na cidade de Pangim, apresentam telhados de inclinação comum, confirmando que o sistema de telhados múltiplos deixa de ser utilizado ao longo do século XIX.Outro importante conjunto documental para o nosso estudo são as fotografias realizadas de Sousa e Paul[1]que se afastam dos desenhos de Lopes Mendes por um natural rigor e qualidade dos detalhes. Ao longo da sua carreira estes dois fotógrafos realizaram vários álbuns com vistas e monumentos de Goa que se distribuem hoje por instituições e particulares. Com uma diferença de escassas décadas dos desenhos de Lopes Mendes, verificamos agora que os telhados de tesoura dos antigos palácios vão, por sua vez, desaparecendo da paisagem urbana e do património da arquitectura tradicional. Casos como o Palácio do Governo em Pangim que Lopes Mendes desenha, ainda, com os tradicionais telhados múltiplos aparecem, agora contínuos, nas fotografias de Sousa e Paúl,  decorrendo da grande remodelação efectuada em 1887, durante o governo do almirante Cardoso de Carvalho. Mesmo ao lado do Palácio do Governo, o antigo Palácio dos Castro sofre igualmente transformações perdendo os telhados múltiplos. Numa visão de conjunto concluímos que os telhados de tesoura, nestas representações do século XIX, aparecem associados aos mais antigos palácios e quintas de recreio, surgindo de forma menos sistemática na arquitectura conventual. Este sistema parece assim caracterizar uma arquitectura de caracter senhorial e de matriz erudita.

          

    Fig. 18,– Palácio dos condes de Nova Goa. Arquivo Casa dos Condes de Nova Goa. C. Fotografia Sousa e Paul. Finais do séc. XIX.

    19A, 19B, 19D. Casa dos Catecúmenos em Betim, Palácio dos Reis de Sundém, Palácio do Governo, Pangim. Vista das Fontainhas. Pangim. Finais do século XIX.  

    [1] Sousa e Paul corresponde a uma firma de dois fotógrafos goeses com grande actividade entre os finais do século XIX e os inícios do século seguinte.

     

     

    VIII – considerações finais

    Do nosso estudo podemos concluir a origem, marcadamente precoce, dos telhados múltiplos e em tesoura no Oriente, que vemos recuarem a meados do século XVI. Da nossa investigação podemos, ainda, concluir que este sistema de telhados não aparecem nos primeiros aglomerados urbanos da primeira metade do século XVI pondo-se concluir que a sua génese e formação se processa na Índia em contacto com uma arquitectura de pendor fortemente simbólico onde a cobertura como o embasamento (ligação à terra) assumem preponderância face às fachadas.  Com apoio documental podemos comprovar que os telhados múltiplos muito inclinados constituíram ao longo do século XVII e XVIII um elemento fundamental na arquitectura civil dotando toda a arquitectura de um forte pendor cenográfico e simbólico. A partir da segunda metade do século XVIII e ao longo do século XIX os telhados de tesoura passam de moda e começando a desaparecer dos edifícios antigos.  Com a perda de hegemonia económica e política de Portugal no Oriente,  a arquitectura deixa de poder afirmar-se como uma arquitectura de conquistadores deixando de ser portadora de valores marcadamente simbólicos. Como caso excepcional temos o Palácio dos Santana da Silva que podemos hoje considerar uma verdadeira jóia da arquitectura goesa.   O quase desaparecimento dos telhados múltiplos fica, no entanto, na nossa interpretação nos chamados balcões das casas dos grandes nobreza goesa e numa arquitectura senhorial que tendia a preservar valores simbólicos de senhorio e classe dominante.  Adquirindo uma forte presença emblemática na morfologia dos programas arquitectónicos, o balcão goês institui-se como a característica mais peculiar da arquitectura civil goesa, fazendo perdurar na casa senhorial uma simbólica de casta shátria que se radicava, por sua vez, na casa torre e nos corpos torreados de telhados de tesoura.

       

    Fig. 20, Palácio Santana da Silva. Margão. Fig. 21 - Palácio dos Reis de Sundém. Ponda, Goa. Fot. Joaquim dos Santos. Fig. 22 Casa dos Fernandes. Benaulim. Goa. Fig. 23 Casa dos Figueiredo. Lotulim. Goa

     

     

     

    Bibliografia

    Carita, Helder, “José Maria Gonsalves (1800-1840)” in Turn of the Sea Art from the Eastern Trade Routes, Londres, Jorge Welch- Research & Publishing, 2017.

    ------------------- Palácios de Goa, Lisboa, Quetzal,

    Cunha, Gerard; Mascarenhas, Annabel; Koshy, Ashok, Houses of Goa, King Street Press, 1999.

    Shankhwalker, Raya, "The Balcão: a Goan expression, in India & Portugal Cultural Interactions, Mumbay, Marg publications, 2001

     

     

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    PTCD/EAT-HAT/11229/2009

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