...
...
Filtrar

    Contador Indo-Português, séc. XVII

    Contador Indo-Português, séc. XVII
    Goa
    XVII

    Introdução

    Contador indo-português, sincretismo estético, material e tecnológico, é uma análise que pretende demonstrar como uma peça de mobiliário pode ser uma excelente fonte documental que materialize a definição de arte produzida durante a expansão portuguesa na India, nos séc. XVI e XVII.

    Nas últimas duas décadas, os estudos feitos por autores nacionais e estrangeiros sobre as artes decorativas, nomeadamente o mobiliário indo-português têm sido grandes contributos para, de uma forma sistematizada e metodológica, se analisar estas peças dentro das suas componentes iconológicas, estéticas e sociológicas.

    Ao analisar a evolução da tipologia (o contador) foi possível refletir sobre os exemplares produzidos durante o século XVII no estilo indo-português: por um lado, o aparecimento de derivações de pequenos cofres, de pequenos escritórios e pequenas arcas, por outro a subsistência de modelos europeus do século XVI e simultaneamente o intenso contacto com outros povos, originou concretizações híbridas. O presente contador é um exemplo desse mesmo hibridismo, onde ocorreram alterações, nomeadamente adições às formas iniciais e estes encontros promoveram a criatividade[1]. Trata-se de um exemplo vivo da micro-história dos contadores indo-portugueses: a inclusão de influências exteriores, reflexo do novo gosto e do novo estilo, quer ao nível das estruturas e formas como também no que diz respeito à decoração, materiais empregues e tecnologia de execução.


         

    legenda:

    I - Alçado principal do contador, II - Ilharga Direita, III -  Ilharga Esquerda IV - Tardoz do contador com as portas fechadas.

     

     

    Identificação do contador

    Proprietário: Fundação das Casas de Fronteira e Alorna; Coleção da Sra. D. Margarida George (Mãe de D. Fernando Mascarenhas, 12º Marquês de Fronteira).

    Nº de Inventário: CDT-0142 e FCFA 2068.

    Classificação: Mobiliário de conter e de aparato.

    Denominação: Mobiliário/ Contador.

    Local de Produção: Possivelmente India.

    Autoria: Desconhecida.

    Datação: Século XVII.

    Estilo: Indo-português, vertente Mogol.

    Materiais: Madeira folhosa, Teca - Tectona grandis L.f., tartaruga e marfim, elementos metálicos.

    Técnicas de decorativas: madeira facheada a folha de ouro, tartaruga, marfim. Puxador torneado.

    Dimensões: Altura 30cm x Profundidade 22cm x Largura 30cm.

    Localização: Sala Juno do Palácio dos Marqueses de Fronteira em Lisboa.

     

     

     

    Descrição do contador

    Contador [2] indo-português em teca (?), Tectona grandis L.f., (A30cm x L30cm x P22cm), de forma paralelepipédica, com tampa tronco piramidal e duas portas, revestido por placas de tartarugas sobre folha de ouro e todas as arestas são avivadas por elementos em marfim. Todos eles têm um duplo sulco e estão cavilhados. As placas de tartaruga também se encontram cavilhadas. Existem madeiras de outras espécies, no seu interior, fruto de intervenções posteriores.

    A decoração é composta por retângulos delimitados a marfim fazendo um contraste entre o claro (marfim) e o escuro (tartaruga). Nas ilhargas existem gualdras com espelhos redondos em metal amarelo.

     

    I- Ilharga direita, II - Ilharga esquerda


    O contador é constituído por uma estrutura paralelepipédica, aberta de um dos lados, onde estão inseridas seis gavetas. No seu interior, estas dispõem-se à volta de uma gaveta central mais alta, ladeada por quatro gavetas com metade da sua altura e todo este conjunto está encimada por uma gaveta disposta na horizontal, todas elas têm puxadores em forma de argolas. As frentes das gavetas são revestidas por placas de tartaruga e estas estão emolduradas por tarjas de marfim. A gaveta central tem um segredo, no fundo da gaveta existe uma outra gaveta mais pequena que só se consegue abrir quando retirada toda a gaveta central da estrutura da sua caixa.

       

    I - Contador portas abertas, II - Gavetas, III - Vista dos lenços e tardozes das gavetas

    Este conjunto é fechado por duas portas em teca revestidas a tartaruga e marfim em ambas as faces. Quando as portas estão fechadas têm a mesma organização decorativa que as ilhargas e tardoz, jogo de quadrados e retângulos, quando as portas estão abertas vemos uma sucessão de quadrados delimitados a marfim. No interior do contador verificamos que os entrepanos e divisórias estão revestidos por tarjas de marfim.

     

    I - Entrepanos

    A tampa do contador em forma trapezoidal[3] constitui um compartimento com fechadura. Este compartimento estaria revestido possivelmente a veludo com galões decorados com fios metálicos. As portas fecham através de um mecanismo constituído por estiletes, colocados a partir da espessura deste mesmo compartimento até metade da largura da porta.

       

    I - Contador tampa aberta, II - Tampa, III - Vista do compartimento com chave

    Existência de uma etiqueta colada no fundo do contador com a inscrição (CTD-0142).

     

     

     

    Técnicas Construtivas:

    Contador de forma paralelepipédica com tampa tronco piramidal e duas portas:

    Caixa: dois painéis verticais e dois horizontais. A assemblagem das ilhargas com o fundo é feita através de malhetes escondidos e cavilhados.

    Interior da caixa, compartimentos destinados às gavetas, compostos por entrepanos horizontais e verticais. Assemblagem feita através de malhetes em castelo.

    Tampa: cinco painéis colados entre si e fixos a um material de natureza celulósica.

    Portas: painéis de madeira de teca revestida.

    Gavetas: frente, lenços, tardoz malhetes cauda andorinha e fundo fixo por cavilhas de bambu (?) Bambusa vulgaris.

     

     

    Técnicas Decorativas:

    As técnicas decorativas referem-se ao conjunto de processos técnicos que, através da utilização de diversos materiais, permitem realizar a ornamentação de uma peça de mobiliário, contribuindo para o seu valor estético que coexiste com a própria funcionalidade do objeto em questão[4].

       

    I - Técnica de fachear, sobreposição de vários materiais, madeira (base), com a folha de ouro por cima e leva posteriormente a placa de tartaruga. A tartaruga tem alguma transparência e no fim molduras em marfim como enquadramento. Todo este conjunto ainda está fixo com pequenas cavilhas de tartaruga.

    II - Técnica de tornear, arte de produzir superfícies curvas (concavas ou convexas) num material, mediante o trabalho de torno [5]. Encontrada nos puxadores das portas.

    III - Técnica de gravação com preenchimento a betume negro.

     

     

    Mecanismo de abertura e fecho

    Portas: Duas argolas entrelaçadas a fazer de dobradiça, com espigões abertos para fazer a fixação.

    I - Vista do mecanismo de fixação das portas, II - Esquema do mecanismo de fixação

    Tampa: Com elementos ferrosos entrelaçados. Com fechadura e escudete que não são de origem, e estilete metálico a fechar todo conjunto.

     

    I - Fechadura                                                           II - Estilete a fechar a porta

     

     

    Estado de conservação

    Identificação das patologias:

    Esquema identificativo das patologias e onde é necessário intervir.

    Deficiente (peça em que é urgente intervir)[6].

    Legenda: Azul escuro -Destaque marfim, Azul claro - Destaque Tartaruga, Vermelho - Falta matfim, Amarelo - Falta tartaruga, Lilaz - Restauros posteriores.

    Ao concluir a observação e depois de identificar todas as patologias existentes (conforme esquema anterior), verificámos que o contador tem as portas trocadas e invertidas. A sequência da gramatica decorativa devia corresponder à sequência da gramática decorativa existente no tardoz e ilhargas. Os contadores e escritórios indo-portugueses de pequenas dimensões, ditos de estrado, eram de uma minucia decorativa e pormenor técnico sem igual. A técnica e perícia dos marceneiros mongóis era exímia e por essa mesma razão estas portas na sua génese não estariam colocadas na posição que se encontram atualmente.

     

    I - Contador actualmente, II - Contador com as portas na posição correta

    O facto de ser facheado e decorado em todas as suas superfícies, frente (portas), ilhargas e tardoz indica-nos que seria uma peça para ser observada por todos os lados, peça de centro. Todo o contador obedece à mesma gramática decorativa, com superfícies simétricas e formas geométricas típicas da arte mogol. Iconograficamente estes elementos remetem-nos para a religião islâmica.

     

     

    Considerações finais

    As ciências da conservação e a utilização de métodos de exames e análise são fundamentais. São informações complementares e contribuem para ajudar a responder a questões variadas sobre a natureza dos materiais, arrependimentos, erros e alterações. Ajudam também a compreender melhor as metodologias de trabalho, opções práticas de seleção de materiais, uma variedade de elementos que nos levam a dialogar diretamente com aqueles que concretizaram estes objetos.

    Hoje em dia, o trabalho desenvolvido na conservação e restauro, apoiado em métodos de exame e análise, tem-se revelado essencial para uma melhor compreensão da memória artística material do passado.

    Se à História cabe a responsabilidade de enquadrar os acontecimentos, à História da Arte contextualizar as criações estéticas da Humanidade, à Conservação e Restauro cabe o diálogo quase direto com aqueles que trabalharam na criação das nossas memórias materiais.

     

     

    Notas:

    [1] Cf. Peter BURKE in Cultural Hybridity, Cambridge, Polity Press, 2009, pp12 e 36.

    [2] Cf. Normas de Inventário – Mobiliário, Artes Plásticas e Artes Decorativas, IPM, 1º Ed, Maio 2004, Lisboa.

    [3] Remete-nos para os caixotões típicos dos forros de teto deste período em Portugal no séc. XVI.

    [4] Cf. Normas de Inventário, Artes Plásticas e Artes Decorativas: Mobiliário, 2004, p. 40.

    [5] Cf. Norma de Inventário, Artes Plásticas e Artes Decorativas: Mobiliário, 2004, p. 41

    [6] Cf. Normas de Inventário – Mobiliário, Artes Plásticas e Artes Decorativas, IPM, 1º Ed., Maio 2004, Lisboa, p.46.

     

    Bibliografia

    AZEVEDO, Carlos de, A Arte de Goa, Damão e Diu – Comissão Executiva do V Centenário do Nascimento de Vasco da Gama, Lisboa, 1970.

    BAILEY, Gauvin Alexander, Art on the Jesuit Missions in Asia and Latin America, 1542-1773, ed. University of Toronto Press, 2001.

    CARITA, Helder e CARDOSO, Homem, Oriente e Ocidente nos Interiores em Portugal, Lisboa, Livraria Civilização Editora, 1983.

    CARITA, Heder, Arquitectura indo‑portuguesa na região de Cochim e Kerala, Fundação Oriente, Lisboa, 2008.

    CARVALHO, Pedro Moura, Luxury for Export. Artistic Exchange between India and Portugal around 1600 (cat.), Boston, Isabella Stewart Gardner Museum, 2008.

    CASTILHO, Manuel, Na Rota do Oriente, catálogo de exposição, ed. Manuel Castilho Antiquários, 1999.

    CASTILHO, Manuel, Por Mares Nunca Dantes Navegados. Oriente. Ocidente, Lisboa, 2008.

    CRESPO, Hugo Miguel in A casa de Simão de Melo in A cidade global – Lisboa no Renascimento, MNAA – INCM, 2017.

    CRESPO, Hugo in Jóias da Carreira da Índia, Lisboa, Museu do Oriente, 2014.

    CRUZ, António José in O início da radiografia de obras de arte em Portugal e a relação entre a radiografia, a conservação e a política – Conservar Património, nº11, 2010.

    DIAS, Pedro in Mobiliário Indo-Português, Moreira de Cónegos: Imaginalis, Coimbra, 2013.

    FERRÃO, Bernardo, A Imaginária Luso-Oriental, Lisboa, IN-CM, 1983.

    FERRÃO, Bernardo, Mobiliário Português: Índia e Japão, vol. III, Lello & Irmãos, 1990.

    FREIRE, Fernanda Castro, Mobiliário, II volume, Lisboa, Fundação Ricardo do Espírito Santo, 2002.

    MENDONÇA, Isabel (coord.), As Artes Decorativas e a Expansão Portuguesa. Imaginário e Viagem, Actas do 2º Colóquio de Artes Decorativas, FRESS-ESAD, 2010.

    MONCADA, Miguel Cabral “Móvel Lusíada – uma sistematização” in Isabel Mayer Godinho Mendonça e Sandra Costa Saldanha (coord. de) Mobiliário Português – Actas do 1º Colóquio de Artes Decorativas, Lisboa, Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, ESAD, FRESS, Lisboa, 2008.

    Normas de Inventário, Artes Plásticas e Artes Decorativas: Mobiliário, 2004.

    SERRÃO, Vitor, «O Túmulo de D. Jerónimo Mascarenhas no Bom Jesus de Goa e a tónica do sincretismo na Índia portuguesa ao tempo dos Filipes: ourivesaria, escultura, pintura», Actas do Congresso Goa: Passado e Presente, Univ. Católica Portuguesa, Lisboa, 2012, pp. 37-73.

     

     

    Autor

    Teresa de Sande e Lemos, ARTIS - IHA / FLUL

     

    ttt
    PTCD/EAT-HAT/11229/2009

    Please publish modules in offcanvas position.