José Maria Pereira Júnior (conhecido mais tarde como Pereira Cão), nasceu em Setúbal, a 21 de Fevereiro de 1841, na Freguesia de S. Julião, no centro da então Vila, na antiga Rua do Buraco d’ Água (hoje em dia Rua Tenente Valadim) e foi baptizado a 19 de Março do mesmo ano, tendo como Padrinho Manoel Severo Correia de Brito Guedes, Cavaleiro das Ordens de Cristo e da Conceição e como madrinha, Nossa Senhora do Parto. Filho de José Maria Pereira (Sénior), nascido na Freguesia de Santa Maria da Graça, Setúbal, em 1804, militar apoiante da causa miguelista, e após a derrota e exílio de D. Miguel, construtor-civil, e de D. Rosalina de Jesus Costa, nascida em 1809, natural de Pedrouços (Cascais). Os seus avós paternos eram Manoel de Oliveira e Joana de Oliveira, e os maternos, o Major António Luís da Costa, Governador da Fortaleza de S. Filipe (em Setúbal), que fez parte da Legião Portuguesa que foi à Rússia durante a época napoleónica, e D. Francisca Rosa das Chagas. Um primo seu, pintor azulejista, Mariano António Brandão, convenceu o seu pai a mandá-lo para Lisboa para estudar nas Belas Artes, visto o jovem ter muita habilidade para o desenho. E com doze anos de idade, em 1853, Pereira Cão parte para Lisboa, frequenta o recém-criado Instituto Industrial, e a Academia de Belas Artes, em que estuda durante três anos, fazendo o curso nocturno. Durante o dia começou a trabalhar junto dos cenógrafos italianos Giuseppe Cinatti (1808-1879), e Achilles Rambois (c. de 1809- 1882), que tinham vindo para Portugal em meados da década de trinta, contratados por Fortunato Lodi, para trabalhar no novo Teatro de D. Maria II e no Teatro de São Carlos. Pereira Cão começou assim o seu percurso e carreira como cenógrafo, e depois foi chamado ao lado de Cinatti e Rambois para os restauros do Palácio da Ajuda, que tinham de estar prontos a tempo do casamento do rei D. Luís I, com a princesa italiana D. Maria Pia de Sabóia. Na Primavera e Verão pintava e decorava palácios e palacetes, no Inverno trabalhava como cenógrafo. Durante cerca de vinte anos trabalhou junto dos seus mestres italianos, no restauro e decoração a fresco e têmpera, nos palácios e palacetes da elite da época. A pouco foi-se autonomizando, recebendo encomendas e a sua fama foi crescendo, tendo pintado do Minho ao Algarve, mais de cem edifícios, entre palácios, palacetes, teatros, igrejas e capelas. Dedicou-se também às tabuletas ilustradas e participou como figura principal, entre os artistas da época, e sendo o grande animador das Comemorações do Terceiro Centenário de Camões, em 1880, tendo executado dois carros alegóricos; participou, também, nas comemorações do Primeiro Centenário do Marquês de Pombal. Nas encomendas públicas, edifícios do Estado ou Igrejas podemos destacar, para além dos trabalhos já citados, os seguintes trabalhos: no Palácio das Necessidades (os restauros das paredes da sala de jantar); nas antigas Cortes (o actual Palácio de S. Bento), pintou a Câmara dos Deputados, o Gabinete da Presidência e a Sala do Bufete; no Palácio do Alfeite (o tecto da sala de jantar); no Supremo Tribunal de Justiça; no Tribunal da Relação; no Hospital de S. José (vestíbulo); na Igreja da Graça; na Igreja do Campo Grande (dos Santos Reis); na Igreja da Ajuda (dos Santos Fiéis de Deus); na Igreja de São Roque (restauros); na Igreja dos Mártires; na Capela do Amparo (em Benfica); na Capela do Santíssimo de Santa Isabel; na Capela de São Pedro (em Caneças); na Igreja do Seixal; na Capela de São Pedro (em Palmela); na capela de São Saturnino (em Fanhões); no Santuário da Carregosa, e em muitos outros trabalhos. No campo das encomendas particulares, destacamos: os palácios do Duque de Palmela, ao Calhariz, no Lumiar e em Azeitão; no palácio de Bessone e Iglésias, no Largo da Biblioteca, em Lisboa; no palácio do Conde de Fontalva (António Ferreira dos Anjos); no palácio do Marquês de Viana, ou Marquês da Praia e Monforte (no Largo do Rato, Lisboa); no palácio dos Condes da Penha Longa e Olivais (ao Pau da Bandeira, em Lisboa); no Palácio Alves Machado, depois Cerqueira (na Rua do Salitre, em Lisboa); no palácio do Dr. Rebelo da Silva (a S. Sebastião da Pedreira, em Lisboa); no palacete de José Ribeiro da Cunha, depois de José da Costa Pedreira (na Praça do Príncipe Real, em Lisboa); no palacete de Cipriano Calleya (na Avenida da Liberdade, em Lisboa); no palacete do Comendador José Nunes Teixeira (antigo palácio Pinto Basto, no Largo do Chiado, em Lisboa); no palacete da Baronesa Samora Correia (na Avenida da Liberdade, posteriormente demolido, e onde se encontra o actual cinema S. Jorge); nos palacetes Sampaio e Ribeiro Ferreira (na rua do Salitre, em Lisboa, já demolidos); no palacete de José Félix da Costa, na Avenida da Liberdade; no palácio da Condessa de Junqueira (em Almeirim); no palacete de Oliveira Feijão (na Quinta da Mafarra, Azóia, Santarém); no palacete do negociante Alexandre da Silva Telhada (em Santarém); no palacete do Dr. Costa Lobo (na Rua dos Coutinhos, em Coimbra); no Paço do Bispo-Conde, em Coimbra; no palacete do estadista Lopes Branco (na Maiorca, Figueira da Foz); no palacete do Largo do Carmo, em Braga; no chalet Barbosa Collen (no Luso); na capela do Palácio Calheiros (em Ois do Bairro); na casa La-Roque (no Porto); no Palácio da Bolsa (no Porto); no Clube de Beja; na Casa Pia (em Beja); no palacete do Visconde da Corte (em S. Brissos, arredores de Cuba); no palacete do Visconde da Esperança (em Cuba); no edifício o Grande Salão de Recreio do Povo (em Setúbal), em 1907, com a decoração intitulada “Um Sonho Verde”; no palácio do Visconde de Estói (arredores de Faro e actual Pousada de Portugal); no palacete de Marçal Pacheco, na Quinta da Fonte da Pipa (em Loulé); no Palacete Magalhães Barros (actual Hotel da Bela Vista, Praia da Rocha, Portimão),com tectos da sua autoria e azulejos executados pelo seu genro e discípulo, Victoria Pereira (1877-1952); numa pastelaria da Rua D. Pedro V; na pastelaria Ferrari (no Chiado, em Lisboa e perdida no incêndio de 1988); no Teatro Apolo (em Lisboa, demolido em 1956); no Teatro Rosa Damasceno (em Santarém, demolido, para dar lugar a um novo teatro de traços modernistas, mas que manteve o mesmo nome). A partir de meados da década de 80 começa a dedicar-se à produção de azulejaria, o que faz na segunda metade da sua vida, ao mesmo tempo que prossegue nos seus trabalhos e encomendas como pintor-decorador. O primeiro trabalho que fez neste campo, foi a pintura dos Painéis de Santa Auta (realizado a partir da tela que se encontrava então no Museu de Arte Ornamental (actual Museu Nacional de Arte Antiga), colocados na Igreja do Convento da Madre de Deus, edifício religioso que restaurou ao lado de outros artistas. No campo da azulejaria o seu trabalho é, também, vasto: pintou o pátio do Palácio da Rosa, em Lisboa (dos Castelo Melhor); a Casa de Santar; a Quinta da Fontebela, no Cartaxo; os jardins do palácio de Estói; pintou e restaurou o Canal da Ribeira do Jamor, no Palácio de Queluz, juntamente com Caetano Alberto Nunes; o asilo do Infante D. Afonso (actual Instituto das Meninas de Odivelas), em Odivelas; a Igreja de Carcavelos; um painel para a Casa do Conde de Castro Guimarães, em Cascais; a Igreja de Estói, no Algarve; a Capela do Casal do Farto (perto da serra de Mira d´Aire, em Torres Novas); um painel para a casa do Nobel da medicina, Egas Moniz; parte dos azulejos do pátio do Real Colégio Militar, atribuídos erradamente a outro artista; alguns dos azulejos do Palacete Centeno, atribuídos, também, equivocadamente a outra época e a um autor desconhecido; o Palacete dos Marqueses de Castelo Melhor (actual Embaixada de Itália); restaurou e pintou novos azulejos para os Hospitais de Santa Marta e de São José; os azulejos do pátio de honra da Quinta da Cardiga (de Luís Sommer, perto da Golegã) e em muitos outros edifícios. Foi, por tudo isto, considerado, ao lado de Ferreira das Tabuletas, e de Rafael Bordalo Pinheiro, um dos autores do chamado, à época, “Renascimento” do azulejo português, e classificado, posteriormente, como um autor revivalista e historicista. Chegou a ser director da Fábrica Viúva de Lamego e teve os seus próprios ateliers e fábricas. Teve como discípulos Eloy Ferreira do Amaral (1839-1927), Basalisa (1871-1961), Caetano Alberto Nunes, Victoria Pereira e Jorge Maltieira (1908-1994), entre outros. Era amigo dos pintores, artistas e escritores, Columbano Bordalo Pinheiro, Félix da Costa, José Malhoa, Rafael Bordalo Pinheiro, Visconde de Castilho, Robles Monteiro e do Rei D. Carlos, entre muitíssimas outras personalidades da época. Faleceu a 16 de Janeiro de 1921, na Rua Saraiva de Carvalho, em Lisboa, repentinamente, e quando ia visitar uma das suas filhas (entre os 32 filhos que teve de dois casamentos, o primeiro com Maria de São José do Carmo Esteves, o segundo com a lisboeta Adelaide Maria da Conceição Coelho Sousa). A primeira mulher deu-lhe catorze filhos; viúvo, voltaria a casar-se com a jovem Adelaide Maria da Conceição Coelho Sousa, que lhe deu dezoito filhos. Nos últimos anos da sua vida morava num vasto “apartamento” na Travessa de S. Domingos, nº 34 (mais tarde sede dos Armazéns Braz e Braz), num quarteirão colado à Igreja de São Domingos. O seu último atelier ficava na Rua de S. Bento, nº 11. Ao seu funeral foram muitas individualidades da época, representando-se o Governo da capital. Os seus restos mortais repousam no Cemitério dos Prazeres, em jazigo de família, ao lado da sua segunda mulher, de alguns dos seus filhos, e do seu genro Victoria Pereira. Tinha várias condecorações e foi agraciado com o Grau de Cavaleiro da Ordem de Cristo pelo decreto de 18 de Julho de 1889. O Rei D. Carlos, seu amigo pessoal, quis torná-lo Barão de Pancas, o que Pereira Cão recusou, dizendo: “Honrarias, sem comedorias, não”. Como vivia apenas do seu trabalho, parecia-lhe despropositado ser Barão, e não ter grandes meios de fortuna, nem viver num palácio ou palacete. Participou na Exposição Universal de Paris de 1889, onde decorou o pavilhão português, trabalho pelo qual foi premiado com medalha de ouro, e viajou por países como Espanha, França, Bélgica, Itália, Grécia e Inglaterra, para se documentar sobre as mais recentes técnicas da pintura decorativa. Quanto ao seu pseudónimo artístico este era baseado no apelido de um dos seus antepassados. O apelido Cão foi buscá-lo a este seu ancestral, pois como afirmou numa carta particular:“ A partir de agora, passo a ser Pereira Cão, para me distinguir dos muitos Júniores que por aí há”. Era descendente da família de Diogo Cão, e um apaixonado pela genealogia. Uma das suas filhas mais novas, D. Maria Adelaide de Sousa Pereira de Victoria Pereira (1887-1959), mulher de Victoria Pereira (1877-1952), coronel, cartógrafo e pintor ceramista, seu discípulo, foi convidada durante a Exposição do Mundo Português, para desfilar num cortejo histórico, como representante da família descendente de Diogo Cão. João Manuel Esteves Pereira (1872-1944), filho do primeiro casamento de Pereira Cão, caracteriza assim o seu pai no Dicionário Portugal: “Pintor genérico, decorador e cenógrafo, cultivando, com distinção há mais de meio século, o ornato e as flores, em que é exímio, e a pintura cerâmica, especialmente os azulejos. Conhecendo e praticando todos os géneros e processos, antigos ou modernos da pintura decorativa dos edifícios, interior ou exterior, como o fresco, temperas diversas, a óleo, aguarela, etc., bem se pode considerar, pelo menos, o nosso derradeiro pintor frescante e o maior dos pintores-decoradores que ficaram do século XIX”.
(Miguel Montez Leal)
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LEAL, Miguel Montez, O Ressurgimento da Pintura Decorativa nos Interiores Palacianos Lisboetas: da Regeneração às vésperas da República, (1851-1910), Tese de Doutoramento em História da Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014 (aguarda defesa).
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