Apresentação
O ilustre morador que dá nome à casa foi Carlos Toledo de Correia e Melo. Nasceu na Vila de São Francisco das Chagas em Taubaté (SP), por volta de 1730. Além de vigário da Paróquia de Santo Antônio na vila de São José, também foi fazendeiro e minerador. O Padre tornou-se um dos líderes da Conjuração Mineira, urdida na Comarca do Rio das Mortes, e é possível que os encontros dos conjurados ocorressem em sua casa. Após a derrocada da conjuração, o Padre Toledo foi preso e seus bens sequestrados. Nos Autos da Devassa então procedida, o traslado de seus bens faz referência à casa da Vila de São José, bem como a todo o seu recheio. Essa é a comprovação documental de que a casa pertencia a Toledo, sendo que o imóvel ao lado direito do seu pertencia ao padre Bento, seu irmão. A Casa Padre Toledo foi palco de muitos acontecimentos históricos importantes, desde as reuniões dos Inconfidentes da Comarca do Rio das Mortes até posteriores encontros republicanos; também foi sede da Prefeitura, da Câmara, convento de freiras e sendo por fim transformado em museu.
Caracterização
A Casa do Padre Toledo caracteriza-se como uma das mais amplas e significativas edificações remanescentes do século XVIII do núcleo arquitetônico da Vila de São José. O terreno possui 2.564,64m2 e fica num ponto privilegiado da urbanização inicial da cidade, mais elevado que o núcleo primitivo.A implantação se dá no alinhamento da rua do Sol e de um pequeno beco a ela perpendicular, ficando as fachadas maiores paralelas à via principal. Junto à casa formou-se o Largo do Sol. A casa tem a entrada principal por um pequeno pátio lateral na fachada oeste, voltada para a Matriz de Santo Antônio. Esse pátio externo faz a transição entre espaço público-espaço privado. Atualmente um longo muro cego delimita a área dos fundos da casa, onde o morro ainda guarda densa vegetação. A casa foi tombada pelo IPHAN no Livro do Tombo Belas Artes: Inscr. nº 482, de 25/04/1954.
Autoria
Pintura decorativa
A casa do vigário apresenta pinturas nos tetos de oito salas do piso 1 e mais três no teto do Torreão. Quatro delas situam-se sob uma estrutura tridimensional composta por quatro trapézios laterais e um elemento retangular central. Apesar da pintura dos Cinco Sentidos ser a mais comentada, o programa decorativo da casa também inclui pinturas baseadas em outros modelos visuais. Vale ressaltar que não foi possível incluir nesse estudo fotografia da pintura do teto da divisão 7. Isso porque, atualmente, esse espaço acomoda parte administrativa do Museu e não há fotografias disponíveis online.
Padre Toledo foi um dos mais ativos inconfidentes, considerado por alguns o mais radical deles. Assim, compreender o contexto histórico no qual se inseria é essencial para analisar as pinturas parietais que decoravam sua casa. A Inconfidência Mineira configurou-se como um evento importante para compreender o processo de formação da sociedade colonial em Minas Gerais. Ela integra de maneira eficiente o imaginário épico e nacionalista da história brasileira. Ademais, olhando-a além de sua faceta romântica, faz-se possível compreender as relações estabelecidas entre a monarquia portuguesa e seus domínios ultramarinos. À medida que o século XVIII chegava ao fim, essas relações demonstram severa transformação, especialmente em Tiradentes com processo intenso de povoamento e urbanização.
As pinturas do forro do salão principal (divisão 4) da Casa do Padre Toledo ganharam destaque dentre os exemplares de pinturas parietais do século XVIII no Brasil. Seja pelo tema, pelas alegorias ou pela técnica, os cinco painéis não só compõem o espaço visualmente, mas também representam em imagens as temáticas intelectuais discutidas na época. As pinturas a têmpera e cola estão em cinco painéis sobre madeira. Elas são emolduradas tanto pela divisão estrutural do forro - em cinco gamelas - , quanto pelos medalhões que compõem as cenas. O tema das pinturas são Os Cinco Sentidos representados por cenas da mitologia clássica. Apesar da mitologia ser tema comum na decoração de interiores brasileira no século XIX, a representação dos Cinco Sentidos só foi aceita como positiva a partir da cultura barroca. Sua “boa utilização” parte do princípio que o uso das sensações não precisa estar necessariamente ligado ao pecado, mas pode funcionar como caminho para o aprimoramento espiritual.
No painel central encontram-se Hermes ou Mercúrio e Vênus ou Afrodite representando o Tato ao enfatizar o gesto do toque das mãos no centro da pintura. Os painéis laterais apresentam o Olfato, no qual Eros oferece uma flor para Psiquê sentir o perfume; e a Visão com um casal não identificado, possivelmente Narciso e Eco, observando-se no espelho. A audição é representada por um possível Apolo tocando lira para quem talvez seja Dafne. Por fim, o Paladar é representado por uma bacante ou Ariadne que oferece vinho a Baco, enquanto ambos estão sentados sob uma videira. Foi o pesquisador Pedro Germano Leal que associou os casais pintados as suas respectivas divindades, tanto na pintura dos Cinco Sentidos, quanto na pintura encontrada no teto do quarto do padre. Apresentou, também, alguns desenhos que podem ter sido utilizados como modelos iconográficos para as pinturas executadas no teto do salão principal. Esses modelos combinam: casais, a iconografia dos sentidos e divindades clássicas.
No modelo visual de Jan Saenredam (c.1565-1607), a série dos Cinco Sentidos é retratada por meio de casais. Estima-se que a produção foi executada em torno de 1595. O holandês foi desenhista, pintor e gravador a buril - firme, fácil e largo. Aprendeu o ofício da pintura com Jacob Gheyn e a arte de gravar com Hendrik Goltzius. Deste último, utilizou as produções como modelo que executou com tanta perfeição, que chegam a ser confundidas com as de seu mestre. Diferenciam-se por meio do desenho mais “correto” e menos “amaneirado” de Saenredam. No rodapé de cada imagem, encontram-se versos em latim escritos por Cornelis Sconaeus. Essa associação era comum na época, já que o texto funcionava como um complemento à imagem. Nesse caso, apresenta-se como um direcionamento à reflexão sobre como utilizar o sentido exposto da melhor maneira. Nota-se, também, a enumeração de uma sequência para os sentidos no canto inferior esquerdo.
Nessa versão, cada sentido é representado por uma mulher, posicionada no centro da composição, aos pés de uma árvore, enquanto cenas bíblicas ocorrem ao seu redor. Abaixo, encontram-se, da esquerda para a direita, as respectivas representações do Tato, Olfato, Visão, Audição e Paladar.
No Tato, temos a mulher cercada por cinco animais: um pássaro em sua mão direita, uma tartaruga aos seus pés, uma aranha em sua teia à esquerda, um pequeno lagarto e um escorpião. Ao fundo da composição estão retratados o milagre da multiplicação dos peixes e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. No Olfato, a figura feminina está cercada por flores, segurando um vaso cheio delas do seu lado direito, enquanto um cachorro está aos seus pés à esquerda. As cenas retratadas ao seu lado são Maria Madalena limpando os pés de Cristo e a Criação de Adão e Eva, da esquerda para a direita. Na Visão, a mulher segura um espelho e um falcão encontra-se aos seus pés, ambos do lado esquerdo da composição. Ao fundo, vemos Cristo realizando um milagre ao curar um cego à direita e a árvore do Conhecimento logo acima do falcão à esquerda. Na Audição, a mulher toca violão com um cervo posicionado aos seus pés do lado direito e alguns outros instrumentos musicais à esquerda. Atrás dela aparecem João Batista pregando e Adão e Eva escondendo-se do Criador. Por fim, no Paladar, a mulher encontra-se rodeada de frutos e um macaco encontra-se aos seus pés. No fundo, vemos o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes à direita e a queda do Homem à esquerda.
Faz-se possível tratar do Padre Toledo como encomendante das pinturas dos Cinco Sentidos devido a alguns fatores. O mais forte é corroborado pelos livros apreendidos após a sua prisão e listados nos Autos de Devassa. Sua biblioteca abrigava exemplares de Abade de Condillac, Voltaire, Locke, Rousseau, entre outros autores menores. A combinação dessas leituras de ideias libertinas francesas soma-se ao fim do estatuto colonial da América, coroado pela independência dos Estados Unidos e, posteriormente, pela própria Revolução Francesa.O tema libertino, portanto, não se limitou à Inconfidência Mineira, mas tocava também a Europa. É possível perceber também, uma articulação entre as questões políticas e as questões morais.
Os Cinco Sentidos perpassam o teor místico religioso, a filosofia e a compreensão da arquitetura - relação entre as Cinco Ordens Clássicas da Arquitetura e os Cinco Sentidos - até o uso das sensações do corpo como forma de autoconhecimento e experimentação erótica na cultura libertina do século XVIII. Assim, a intensa e ativa participação do Padre Toledo no movimento inconfidente torna as pinturas dessa sala cenário para os encontros, “escondendo” referências e alusões. Criava-se, portanto, um lugar propício para meditações e encontros, enquanto refletia-se sobre o efêmero e as vaidades: “as coisas e as sensações do mundo são passageiras, só o espírito é eterno”.
Documentação
Casa da rua Direita
Por fim, sinaliza-se a existência de uma casa da Rua Direita, próxima da casa do Padre Toledo, que contém pinturas semelhantes no teto (imagem colorida abaixo). As imagens em preto e branco estão disponíveis no material enviado pelo IPHAN, a respeito da casa do vigário. Entretanto, não são sinalizadas como pertencentes a outra casa e encontram-se misturadas às outras imagens da casa do padre. A obra não sofreu restaurações, portanto, encontra-se em estado bastante precário. Entretanto, Pedro Germano ressaltou que essa pintura pode revelar alguns detalhes que já não seriam mais reconhecíveis na Casa do Padre Toledo. Ele aponta, especialmente, para uma cidadela nos fatti, presente em um dos painéis, e asas que foram suprimidas, em outro painel. Ambos elementos não são encontrados nas pinturas da casa de Toledo, seja por escolha do encomendante ou devido às possíveis intervenções posteriores. Ainda assim, essas evidências, para ele, confirmariam a existência de um modelo visual a ser seguido e copiado, segundo a doutrina do decoro da época.
Observação
Coordenação: Ana Pessoa (FCRB)
Pesquisa: Júlia Sousa Costa (ICFCRB/CNPq)
Edição: Andreza Baptista (PCTCC/FCRB)