Apresentação
No seu sentido festivo, transbordante e profundamente original, a janela manuelina que vemos espalhada por todo o país, nas suas mais variadas formas e tipologias, é um fenómeno particularmente relevante e significativo, tanto na arquitetura, como em toda a arte portuguesa. Testemunha o período do reinado de D. Manuel, marcado por um ambiente, festivo e confiante que se abria com a chegada das caravelas da armada de Vasco da Gama à Índia. Apoiada na alta rentabilidade financeira do novo comércio das especiarias, observamos uma política reformista de reforço e centralização do poder real onde a arquitectura e o urbanismo assumem um papel fundamental. Numa acção concertada da Casa Real, este ambiente é acentuado pela emergência de uma nova emblemática estética que, alastrando rapidamente, impregna a arquitectura de todo o território, manifestando uma enorme originalidade e uma transbordante propensão decorativa.
Sequência de janelas do andar nobre da fachada sul do Paço da Sempre Noiva, em Arraiolos.
A janela manuelina e o “manuelino”
A estética manuelina, anticlássica e buscando a sua inspiração em tradições autóctones, impregna toda a arquitectura de uma complexidade polimórfica que se afirma de forte sentido ecléctico e imperial. Basta referir a janela do convento de Tomar para evidenciar que esta janela aqui não é um elemento funcional, mas um elemento altamente simbólico que se apresenta com um elemento aglutinador, por excelência, de todo o edifício, assumindo a importância que o portal adquire na arquitectura gótica ou ainda na arte barroca. Não só na carga decorativa como na forma individualizada como desponta nas fachadas da arte manuelina, as janelas nas suas mais diversas formas emergem como um elemento - que se manifesta como os olhos da casa, um olhar sobre o mundo e a paisagem e em última análise, pela sua espectacularidade, sobre a alma portuguesa ou num futuro que na altura se apresentava altamente promissor.
Pormenor das insígnias reais de D. Manuel I na janela do Convento de Cristo em Tomar
Da arte erudita à arte popular
Contrariamente ao Renascimento que em Portugal assume uma forma restrita numa vertente erudita e de corte, a arquitectura do manuelino afirma-se de um fenómeno complexo e de grande diversidade morfológica que vemos manifestar-se desde a mais erudita e elaborada expressão arquitectónica até a arte popular das pequenas casas do interior das Beiras e do Norte do país.
Janela geminada do Paço dos Sepúlveda/Hotel Mar d’Água em Évora. Janela na torre de Menagem do Castelo de Pinhel. Janela de peito na Casa da Hospedaria em Linhares da Beira.
Da cronologia do manuelino entre 1507 e 1552
A Casa da Arieira perto de Tentugal assume particular importância dado a permanência de janela manuelina com uma inscrição : "Joha (o) Alvarez me fez e seo irmao pedralvarez em 1507". O primitivo edifício foi mandado construir, em 1504, por Diogo Pereira de Sampaio, primeiro elemento da família Pereira de Sampaio a residir em Tentúgal. Esta janela com a data de 1507 articula-se com outra janela com a data de 1552 situada em Freixo de Espada à Cinta e que nos permite estender o estilo manuelino e o fenómeno das suas janelas muito para além do reinado de D. Mauel I.
Janela manuelina da Casa da Arieira. Referência da janela na revista Ilustração Portuguesa, embora com uma gralha do editor dado dar a data de inscrição na janela de 1501.Janela manuelina em Freixo de Espada à Cinta com cronograma de 1552.
Gótico flamejante iberizado-1º fase
Acompanhando a evolução da arte manuelina constatamos nas janelas a existência de um primeiro ciclo marcado pelo gosto de Mateus Fernandes e do círculo dos mestres da Batalha. Nesta vertente vemos associar-se uma tendência vegetalista e abstrata e uma delicadeza nas formas e no desenho dos pormenores.
Janela manuelina em Santarém. Janela de peito manuelina na vila da Batalha. Janela geminada da Casa Ribafria em Sintra. Janela em Óbidos. Janelas geminadas na Torre da Casa de João Vogado, Mouraria, Lisboa.
Naturalismo de Boytaca e dos Arrudas -2ª fase
Uma primeira fase de transição e ainda marcada por um certo vegetalismo abstracto e delicado dá lugar a um naturalismo exuberante que promovido por figuras como Boytaca ou os irmãos Arruda acaba por concentrar as características mais típicas da chamada arte do manuelino. Nesta exuberância estão , troncos, borlas, laços, frutos, alcachofras, rosetas, cogulhos cruzando-se, conforme as situações, com elementos heráldicos.
Paço do Governador de Óbidos. Janela geminada da casa de Garcia Resende em Évora. Janela geminada da Torre do Castelo de Pinhel. Janela em Beja, na rua Afonso Costa. Janela de peito na antiga judiaria de Guarda. Janela geminada no Castelo de Belmonte. Janela geminada com as armas do cónego Pedro Gomes de Abreu, em Viseu.
Paço de Sintra
Reedificado no século XV, o paço de Sintra recebe a partir de 1489 uma sequência de novas campanhas de obra que lhe conferem uma morfologia e semblante peculiar. Entre 1505 e 1520 ergueu-se a chamada ala manuelina com as obras dirigidas por Boytaca. No contexto desta empreitada em 1508, teve início por sua vez a construção do torreão da Sala dos Brasões.
Janela da Sala dos Cisnes. Janela da ala manuelina atribuído a Boytaca. Janelas e torreão da Sala dos Brasões. Vista de conjunto de Charles Landseer in Desenhos e Aguarelas de Portugal e do Brasil, 1825-1826. São Paulo, IMS,2010.
Janelas manuelinas da Quinta da Torre de Santo António
Mandada construir pelo ano de 1901 num estilo neomanuelino o edifício recebeu na fachada Sul duas janelas manuelinas retiradas de um edifício da vila da Batalha. As janelas foram desenhadas por Haupt ainda na sua localização original sendo o desenho incluído na obra do autor Arquitectura da Renascença em Portugal, Lisboa, J. Rodrigues & C.1924, pp.184-185.
Janelas geminadas do actual corpo sul da Quinta. Desenhos de Karl Albrecht Haupt em 1888, incluídos na obra do autor Arquitectura da Renascença em Portugal, Lisboa, J. Rodrigues & C.1924, pp.184-185. Vista da fachada sul da Quinta da Torre de Santo António.
Paço de Sub-Ripas
Enquadradas com o portal de entrada, as janelas do Paço de Sub-Ripas destacam-se pela coerência estética demarcando as salas de aparato do piso nobre. Edificado pelos anos de 1514 sobre construções da antiga cerca medieval o Paço de Sub-Ribas mantem uma certa estrutura medieval organizando-se em altura e desfrutando da vista sobre o rio Mondego. No seu naturalismo vegetalista, algo precioso e delicado, estas janelas estabelecem claras afinidades com a obra de Marcos Pires e com a capela do antigo Paço Real de Coimbra da sua autoria.
Janelas de peito da fachada nascente do Paço de Sub-Ripas Portal de entrada, passadiço e vista geral do Paço virado a poente e ao rio Mondego
Mudejarismo alentejano
Na zona do Alentejo assistimos durante todo o período manuelino a uma influência na arquitectura de matriz islâmica, que se manifesta com particular relevo no uso do arco ultrapassado. Concentrada na zona de Évora não observamos esta tendência em outras zonas de Portugal, sendo provável que esta influência tenha vindo da Andaluzia que manteve relações comerciais privilegiadas com a cidade de Évora.
Sequência de janelas manuelinas de arco ultrapassado. Janela do Paço dos Sepúlveda/Hotel Mar d’Ar, em Évora. Janela geminada do Paço de Alvito. Janela do Paço de Águas de Peixe. Janela geminada no Paço dos Condes de Basto, em Évora. Janela geminada na Praça Pedro Nunes em Alcácer do Sal. Janela geminada da Casa do Alcaide-Mor de Estremoz.
Paço Real de Évora
Paço de Sempre Noiva
Raro exemplo de uma residência senhorial dos inícios do século XVI podemos, ainda, perceber na sucessão das quatro janelas do andar nobre a organização de um programa interior de um paço quinhentista em clara sintonia com o Paço dos Melo Alvim em Viana do Castelo Junto à entrada e maiores proporções, as duas janelas assinalam de forma clara a “salla”. A janela seguinte de sacada correspondia à antecâmara. Por fim a ultima de menores proporções acomodaria a camara sendo ainda assinalada pela janela de canto com vista para o pátio como para a paisagem.
Sequência de janelas, pormenor de capitel e vista de conjunto do Paço da Sempre Noiva, em Arraiolos.
Plateresco e a 3ª fase do manuelino
Numa terceira fase vemos emergir uma tendência para integrar um vocabulário decorativo de referência clássica integrado numa sensibilidade manuelina marcada por um sentido polimórfico e eclético. Se no norte esta tendência á marcada pelos mestres biscainhos no centro e em Lisboa esta tendência manifesta-se pela influência de Nicolau Chantrene que trabalhando em grandes estaleiros reais acabam por criar uma escola de pedreiros escultores.
Janela de peito manuelina no Paço Episcopal da Guarda. Janela geminada encimada com armas de D. Nuno de Sousa na rua Azevedo Coutinho, em Portalegre. Janela manuelina na Ribeira Brava nos Açores. Janela da casa do alcaide do Castelo de Campo Maior. Janela da Casa dos Costa Barros em Viana do Castelo.
Pormenor de friso com brutescos na Janela Manuelina na Ribeira Brava
O Paço dos Coimbra
Embora demolido, o Paço dos Coimbra, em Braga foi mais tarde parcialmente reconstruído. Da reconastrução foram conservadas as antigas janelas de desenho particularmente elaborado marcadas por de grande sentido festivo. Na sua estética verificamos um claro introdução de elementos decorativos do Renascimento que no Norte do país são veiculados no contexto da vinda mestres escultores biscainhos.
Sequência das antigas janelas do piso nobre da Casa dos Coimbra, em Braga. A configuração da fachada do antigo paço ficou registada num artigo da revista Ilustração Portuguesa, II série, 2 de Junho de 1906, pp 587-588
Pormenor de figuras de brutesco na janela do Paço dos Coimbra.
Paço dos Melo Alvim
Raro exemplo, podemos ainda perceber, na sucessão das quatro janelas do andar nobre, a organização de um programa interior de um paço quinhentista em clara sintonia com o Paço da Sempre Noiva. Junto à entrada e de maiores proporções, a janela de sacada assinala de forma clara a “salla”. As duas seguintes corresponderiam à antecâmara e a ultima de menores proporções seria a camara.
Janela de sacada e janelas de peito na fachada do paço dos Melo Alvim. Pormenor da fachada e vista de conjunto do paço.
Beiras e norte
Na Beira interior, e estendendo-se mais pontualmente pelo Norte, encontramos uma série de janelas manuelinas de pequenas dimensões integradas em casas e edifícios de construção popular. Com formas e desenhos muito variados estas janelas atestam a forma como o manuelino foi absorvido e assimilado até ás mais longínquas aldeias e vilas do interior
Sequência de janelas manuelinas de médias e pequenas proporções. Linhares da Beira, Freixo de Espada à Cinta. Janela da Casa de Canelas em Mangualde. Janela e vista de casa urbana na vila de São Pedro do Sul.
Janelas de peito e fachada de casa urbana em Pinhel. Janela e vista de conjunto de casa em Linhares da Beira.
Torres e casas torre
Construídas na época manuelina e muitas vezes resultando de renovações de época manuelina, vemos desenharem-se um conjunto de janelas manuelinas de linhas sóbrias em torres ou casas torre, distribuídas por todo o país.
Torre de Barbosa. Casa da Torre em Gouveia. Janela e vista de conjunto da Torre das ÁSguias. Janela e vista de conjunto do Paço da Torre de Lanhelas
Do tardo manuelino ao neomanuelino
Estendendo-se do reinado de D. Manuel I até ao reinado de D. João III o Manuelino vai perdurar pontualmente em casos que tentam perdurar uma memória de uma época de vitórias e grandeza passadas. Entre os casos mais interessantes situa-se o Palácio dos Viscondes da Carreira onde a estrutura e diferentes elementos arquitectónicos apontam para uma construção claramente do século XVII. Mesmo ao lado o Paço dos Alpoim acusa igualmente uma construção do século XVII embora sobre um edifício mais antigo.
Janela de sacada e janela de peito da Casa dos Viscondes da Carreira, em Viana do Castelo. Janela de sacada e fachada do paço dos Alpoim, em Viana do Castelo.
Janelas neo-manuelinas
No contexto dos revivalismos do século XIX o neomanuelino afirma-se como o estilo de referência nacional assumindo a janela, nesta arquitectura, uma forte autonomia e grande diversidade polimórfica de acordo com a estética manuelina.
Janela do palacete Lancastre em Cascais. Janela de edifício na praça do Mercado em Coimbra. Janelas do Café de Santa Cruz em Coimbra. Janela geminada na Quinta da Regaleira. Varanda e vista geral do Palácio Hotel do Buçaco.
Palácio da Pena
Entre os casos de revivalismo neomanuelino o Palácio da Pena emerge como um caso de excepção dada a precocidade das suas opções face à generalidade dos casos de neomanuelino normalmente situados nos finais do século XIX e inícios do século seguinte. Digno de nota esta evocação vai concentrar-se na emblemática janela do Convento de Tomar que aqui surge como símbolo da nação e dos seus feitos épicos.
Janela , óculo e balcão do Palácio da Pena, onde se desmultiplicam referências à arquitectura manuelina.
Quinta da Regaleira
Com preocupações historicistas, Luigi Manini desenha para o seu projecto da Quinta da Regaleira um vasto conjunto de janelas usando um receituário manuelino de clara inspiração em Boytaca e em Diogo de Arruda. Recorrendo-se de uma preocupação simbólica vemos desmultiplicarem-se cordas, troncos, bolas, laços associados com uma panóplia de elementos vegetalistas de grande pujança formal.
Sequência de janelas do Palácio da Quinta da Regaleira onde se destaca uma clara inspiração na obra de Diogo Boytaca.
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