Apresentação
A pintura de tecto e paredes da Sala do Trono destaca-se no contexto da história da arquitectura do Palácio Nacional de Mafra. A sua realização resultou do envolvimento de dois dos mestres de pintura histórica portuguesa mais proeminentes da época, Cyrillo Volkmar Machado, director do ciclo pictórico do Palácio Nacional de Mafra, e António Domingos Sequeira ligado ao processo pictórico do Palácio Nacional da Ajuda. Este último foi responsável pela magnífica sequência de pintura alegórica exposta nas paredes, associadas às virtudes do príncipe regente D. João, conferindo a esta sala uma qualidade de grande galeria de pintura. O artista Cyrillo Volkmar Machado ocupou-se da complexa narrativa histórica que se encontra presente no eixo central da pintura de tecto, na qual se destaca um discurso em torno do enaltecimento da monarquia brigantina e do carácter heróico da nação portuguesa; já Manuel Piolti foi incumbido da parte ornamental.
Enquadramento histórico e arquitectónico
Projectado por João Frederico Ludovice, arquitecto e engenheiro militar, o palácio foi mandado construir por D. João V com base num programa de palácio e convento para frades arrábidos. A construção do edifício contou com o apoio do engenheiro-mor Manuel da Maia e do arquitecto Custódio Vieira. Com planta poligonal, composta pela justaposição de dois grandes corpos rectangulares, um principal, a ocidente, que comporta o paço real e a basílica, e um secundário, a nascente, que contém os aposentos dos infantes e o convento. A fachada principal do palácio, virada a poente, é constituída por um corpo de três pisos, interrompida ao meio pela igreja, e por dois torreões de planta quadrada, que encerram os extremos do palácio (Figs. 1, 2, 3 e 4). O andar nobre localiza-se no 2º piso, com inúmeras salas distribuídas segundo o sistema de alinhamento contínuo, característica da tipologia habitacional barroca.
Planta e vista geral do Palácio Nacional de Mafra.
O programa distributivo e a Sala do Trono
A Sala do Trono ou das Audiências ou ainda Sala do Dossel localiza-se no piso nobre do edifício, no extremo norte, junto ao torreão do Rei. Os aposentos do Rei e da Rainha, designados na época por quartos do Rei e o da Rainha, funcionavam separadamente, cada um com as suas cozinhas na cave, as despensas e ucharias no piso térreo, os quartos dos Camaristas ou das Damas no 1º piso, enquanto os aposentos reais se situavam no piso nobre e os dos criados nos mezaninos (sótãos). (Figs. 5 e 6)
No que diz respeito aos aposentos dos príncipes e das princesas, encontravam-se nas extremidades Nordeste e Sudeste, respectivamente. Para os corpos da fachada principal estavam remetidas algumas das áreas mais sociais, como a longa galeria que liga os torreões norte e sul (com c. 232 metros), as salas das Descobertas, dos Destinos, da Galeria ou Faetonte, da Bênção (com dupla janela de sacada sobre a praça e sobre a nave da basílica) e dos Camaristas (Figs. 7-8).
Nos torreões achavam-se os aposentos reais (no lado norte do rei e lado sul da rainha, e após a morte de D. Fernando II toda a família real passou a ocupar o torreão sul, sendo o norte reservado aos visitantes de maior importância).
Na ala norte destacam-se as salas de Diana, do Trono (ou das Audiências) e a capela real com invocação de São José (Fig. 9). Na ala sul, as salas de D. Pedro V, da Música e a capela da rainha, com invocação da Virgem. Na ala nascente localizam-se as salas de Jogos, de Caça e de Jantar (Fig. 10). Por último, sobre o convento, nas extremidades nordeste e sudeste do terceiro piso, localizam-se os aposentos dos infantes, também em separado, tendo ao centro a biblioteca conventual.
Vista geral da escadaria de acesso ao piso nobre e das salas do Palácio Nacional de Mafra.
Cyrillo Volkmar Machado e a campanha de pictórica de 1796
Estrutura e composição decorativa da Sala do Trono
A Sala das Audiências possuiu 18 metros de comprimento e 8 metros de largura, estendendo-se de poente para nascente. É constituída, no lado sul, por três grandes janelas orientadas para um dos claustros, o Claustro do Norte, e por uma porta que permite aceder à Sala de Diana (antiga Sala da Tocha). No lado norte foram colocadas três portas que permitem a ligação a outros espaços; já nos lados nascente e poente, observam-se duas portas falsas pintadas em tromp l`oil, à excepção do lado poente, onde foi incluída uma porta com ligação a outras salas do palácio (Fig. 16).
A pintura de tecto da Sala das Audiências tem “mais de 30 palmos de comprido” e 9 metros de altura. Inscreve-se num formato em elipse para um espaço quadrangular, onde se observa uma complexa composição alegórica, onde vários grupos se encaixam num sentido intrínseco entre si (Fig. 17). Esta constitui um discurso apologético em torno das qualidades do bom soberano, neste caso o príncipe regente D. João, que além de “Pai da Pátria”, nutria uma especial afeição pelos seus vassalos ao ponto de os recompensar com variados prémios.
Vista geral da Sala do Trono, ou das Audiências.
Núcleo central
Vista geral da pintura de tecto da Sala do Trono, ou das Audiências, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806.
Esquema gráfico com a distribuição dos grupos que se encontram representados na pintura de tecto: 1) a Alta Providência, 2) a Providência Régia, 3) os “eclesiásticos beneméritos”, 4) a sociedade civil e as Belas-Artes. Palácio Nacional de Mafra, Sala das Audiências.
O grupo da Alta Providência (1)
Três figuras femininas aladas que seguram guirlandas de flores, símbolos de prosperidade. A Alta Providência, portadora de uma figura infantil alada que carrega o ceptro e a coroa real, e o Anjo-Custódio, o grande protector do Reino de Portugal, com vestes azuis (Fig. 24-27).
A Alta Providência, Cyrillo Volkmar Machado, 1806.
O grupo da Providência Régia (2).
A Providência Régia poderá ser uma figuração alegórica da rainha D. Maria I. Esta encontra-se ornada por uma coroa e um manto, ostenta uma faixa que termina em pêndulo com a insígnia militar da Ordem de Cristo. A Providência Régia determina aos mensageiros alados (ou portadores das insígnias), a distribuição dos “competentes prémios” (Fig. 28). Observa-se a representação da Felicidade Pública, através do Corno da Abundância, encimado por uma Tiara Papal, e um Banco de Pinchar (Fig. 29). No lado direito da composição, o deus Jano, representado através de uma face dupla, querendo isto indicar a ligação ao Passado (cabeça de um ancião) e ao Futuro (mulher jovem). Jano tem uma chave na mão, simbolizando que este assume o papel de guardião dos caminhos e das encruzilhadas, algo que se encontrava associado à sua imagem (Fig. 30). A reprodução desta divindade poderá estar relacionada com o complexo contexto político que se fazia sentir desde 1796 e a consequente fragilidade da nação portuguesa perante os acontecimentos que assolavam a Europa. Portugal debatia-se pela sua soberania no que dizia respeito às estratégias de natureza política e diplomática, na medida em que Espanha se havia tornado aliada de França. A breve história da “Guerra das Laranjas” (1801), com a consequente perda de Olivença para a Espanha, deve ter sido um acontecimento que relembrou o período histórico da ocupação dinástica filipina.
A Providência Régia a determinar aos mensageiros alados a distribuição dos prémios, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806.
O grupo dos “eclesiásticos beneméritos” (3)
Constituído por dois frades agostinhos e dois franciscanos com óbvias ligações à construção e manutenção do empreendimento mafrense (Fig. 31). A pairar sobre este grupo de religiosos encontra-se uma mitra carregada por uma figura infantil, que pode remeter para a simbólica associada a uma forma de recompensa de âmbito eclesiástico (Figs. 32-33). Relativamente aos franciscanos (ou capuchos arrábidos), compreende-se a sua presença nesta pintura, visto que a fundação do convento esteve desde sempre relacionada aos religiosos capuchos arrábidos. No reinado de D. José os franciscanos foram substituídos pelos cónegos regulares de Santo Agostinho. Estas duas ordens religiosas encontram-se aqui expostas porque se constituíram como os primeiros moradores, guardiões e grandes conservadores do edifício mafrense.
Os religiosos capuchos arrábidos e cónegos regulares de Santo Agostinho, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806.
A sociedade civil (4).
Apresenta indivíduos ligados à “sociedade civil”, com exercício de funções na área do direito e nas ciências, sendo portanto o grupo dos “ministros” e dos sábios. Foram igualmente incluídas as Belas-Artes, nomeadamente a pintura, reproduzida através de um auto-retrato do próprio Cyrillo Volkmar Machado, onde um distribuidor de prémios (figura infantil alada) lhe coloca à volta do pescoço um colar com pendente em que se inclui uma efígie com o busto de D. João VI. Cyrillo segura o retrato do príncipe, como forma de elogio (Fig. 34).
No campo das Belas-Artes encontram-se ainda representadas a arquitectura, representada por uma mulher com um compasso na mão direita e uma figura masculina com ligações à escultura, assim como os seus respectivos atributos, o escopro o martelo e um busto. Ambas estão a ser premiadas pelas figuras infantis aladas (Fig. 35).
Cyrillo incluiu ainda no referido grupo mais três personagens civis, vestidas com jabot, ligadas provavelmente às áreas das humanidades e das ciências. Uma delas possui a Cruz da Ordem de Cristo, deduzindo-se que esta figura se notabilizou em alguma área do saber humanístico, e a outra personagem foi outorgado um símbolo que aparenta ser consagrado às ciências (uma esfera armilar incompleta). Talvez não seja totalmente inusitado que o personagem aqui representado com a Ordem de Cristo possa ser, eventualmente, D. José de Vasconcelos e Sousa, homenageado com a Grão-Cruz da Ordem de Santiago e na Ordem de Cristo (Fig. 36).
Também a outra personagem do conjunto foi outorgado um símbolo, que aparenta ser consagrado às ciências (uma esfera armilar incompleta). À direita de Cyrillo encontram-se três figuras ligadas à música, tendo uma delas a Cruz da Ordem de Cristo. Não é insólito que estejamos perante Marcos António da Fonseca Portugal, visto este compositor ter sido um dos mais famosos compositores do tempo do príncipe regente D. João, tendo inclusive atingido fama internacional (Fig. 37).
Distribuição de prémios às Belas-Artes, Humanidades, Ciências e Música, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806.
Alegoria do lado nascente
Na parte nascente observa-se uma matrona guerreira com conotações a uma deusa guerreira. A matrona sustém na mão esquerda um feixe de lictor, um símbolo utilizado desde o Império Romano e que significa uma fusão de homens em nome de um objectivo comum, um símbolo da soberania e a união em torno de um soberano (Fig. 38). Este conjunto alegórico foi encimado por um amplo dossel, com óbvias ligações às criações plásticas de Manuel Piolti (Fig. 39). A matrona esmaga com o pé a face de uma figura masculina com máscara, que pode muito bem representar o carácter do astucioso Napoleão Bonaparte. Torna-se claro que temos aqui representado o Génio da Nação portuguesa. Na mão direita da matrona observa-se uma corrente de metal adornada com um medalhão e uma efígie (talvez de D. João VI).
No seguimento deste “grupo” foi inserida descensionalmente na pintura uma personagem masculina que carrega um ramo composto por folhas de palma, parras e espigas, não sendo de todo impossível que estejam intimamente ligados à figura do príncipe regente. A rama de palmeira, segundo Plutarco, converte-se nos combates no símbolo da vitória, porque está na sua natureza não ceder à força que a pressiona e oprime, enquanto a folha de parra e espigas simbolizam a prosperidade da nação proporcionada sob a égide da Coroa. A mesma figura segura duas coroas de louros e um diadema, este último símbolo da Vitória de uma entidade soberana; ao lado das coroas de louros foi inserido um cordão com a Cruz da Ordem dos Hospitalários (ou de Malta). As duas coroas de louros são o atributo dos vencedores e triunfadores, mas neste caso também podem significar o Amor da Virtude; já a Cruz de Malta está explicada pelo facto de D. João VI ter sido Grão-Prior do Crato. Dos 34 Reis de Portugal, só quatro foram Grão-Priores do Crato, sendo um deles D. João VI e, dos outros três, um foi seu pai, D. Pedro III. Do lado contrário da composição pictórica foi colocada uma figura anciã com barba, ostentando um machado de guerra e um grilhão que termina em algema (Fig. 40). Esta figuração alegórica é um verdadeiro manifesto memorial da libertação de Portugal após sessenta anos de domínio espanhol, relembrando esse carácter “nacional” e intrépido que possibilitou a libertação do país.
Vista geral da composição alegórica, Cyrillo Volkmar Machado, Manoel Piolti e colaboradores, 1806-07.
Na parte superior do dossel é possível observar um espelho e uma serpente, com indissociáveis ligações à Prudência e a Benignidade, com um sol no meio do peito e uma rama de pinheiro na mão direita (Fig. 41). A Benignidade tem por objectivo imediato a honra, assim como outorgar honras, sendo a mais digna qualidade que possuiu um príncipe generoso. A rama de pinheiro é o símbolo apropriado da Benignidade. O sol no peito da personagem feminina significa o Sol da Justiça, que abarca a totalidade das virtudes, ou seja, ao levarmos o sol nos nossos corações possuiremos uma virtude perfeita e verdadeira. Temos assim representadas a Prudência, a Benignidade e a Justiça, as virtudes do bom governante.
Matrona guerreira; alegorias à Prudência, Benignidade, Amor della Patria e à Força, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806-07.
Do lado esquerdo do exterior do dossel foi incorporada uma figura feminina que possui na mão esquerda uma taça oval, da qual brota uma pequena labareda de fogo. O cálice com a labareda de fogo pode sugerir a ideia de que a Paz pressupõe a destruição das armas, mas também é um atributo de Vénus, que «levava o fogo do Amor à alma daqueles que a cercavam». Posto isto, é provável que a taça oval com a labareda de fogo tenha analogia com o conceito de Amor della Patria, uma qualidade que residia no coração dos portugueses (Fig. 42). No seguimento desta figura feminina, encontra-se uma outra figura feminina com a clava de Hércules e a cabeça de um leão (Fig. 43). É iniludível a familiaridade com um dos Doze Trabalhos de Hércules, nomeadamente O Leão de Nemeia. Hércules é a personificação da força, da coragem e da resistência, qualidades da Lusitânia. Torna-se necessário enfatizar que estas pinturas se encontravam na parede principal onde se localizava outrora o Dossel e, sendo assim, fazia todo o sentido incluir estes conceitos alegóricos em torno do enaltecimento do príncipe regente D. João VI e de uma Lusitânia aguerrida e resiliente, governada por um rei benigno e justo.
Sob a matrona, um quadro alusivo à Restauração da Independência de 1640, destacando-se o episódio da aclamação de D. João IV como rei de Portugal em Dezembro de 1640, após 60 anos de governação espanhola. Acham-se ainda aqui várias figuras ligadas a Ordens Militares, ostentando a Cruz de Avis e a Cruz de Cristo, provavelmente os generais-fidalgos da Guerra da Restauração (Figs. 44-45).
Aclamação de D. João IV como rei de Portugal em Dezembro de 1640, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806-07.
Composição do lado poente
A composição plástica do lado poente: no centro da composição temos a Lusitânia, ladeada por deuses fluviais, sendo um deles o Tejo Pátrio (Fig. 46). A Lusitânia tem na mão esquerda o escudo de Portugal e um ceptro, fonte de autoridade real e um dragão no elmo que representa as armas da Casa de Bragança. Ainda no âmbito desta composição alegórica, a Lusitânia calca uma figura masculina que possuiu na “mão direita um búzio”. Sabe-se que um dos significados do búzio é a qualidade do que é fusco e denegrido, e portanto é admissível que possa estar relacionado com as características governativas de Napoleão Bonaparte que, além de manhoso, era totalmente desacreditado e malvisto, sendo por isso esmagado pela força da Lusitânia (Fig. 47).
Na parte superior do dossel localiza-se uma figura com uma rama de oliveira na mão, simbolizando a Paz, à semelhança da matrona guerreira, também a Lusitânia se encontra sobre um plinto decorado com a cerimónia da consagração de Nossa Senhora da Conceição como Rainha de Portugal, mais especificamente o evento onde D. João IV coroa a imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa como Rainha de Portugal nas cortes de 1646 (Fig. 48).
Vista geral da composição alegórica; Consagração de Nossa Senhora da Conceição como Rainha de Portugal, Cyrillo Volkmar Machado e colaboradores, 1806-07.
Balaustrada de conjunto
Os lados norte e sul da sala são percorridos por uma longa balaustrada, dotada de uma função de transição entre as paredes e o tecto, conferindo ao mesmo tempo unidade ao conjunto; esta balaustrada é interrompida no seu eixo central por uma tribuna ornamentada com dois panos de peitoril. Sobre esta tribuna situam-se duas figuras femininas, sem qualquer tipo de atributo, o que dificulta a sua identificação e pode indiciar um preenchimento figurativo de carácter meramente ornamental (Figs. 49-52).
Vista geral da balaustrada de conjunto que percorre as paredes norte e sul, Cyrillo Volkmar Machado, Manuel Piolti e colaboradores,1806-07.
Paredes da Sala do Trono
A pintura das paredes da Sala do Trono apresenta uma série de alegorias, executadas por António Domingos Sequeira. Todas as personagens se encontram com inscrições, cujo intuito é facilitar ao observador a sua identificação. A identificação de imagens vem já da Antiguidade Clássica, onde os artistas costumavam muitas vezes gravar os respectivos nomes nas imagens representadas nas medalhas antigas: Abundantia, Concordia, Fortitudo, Felicitas, Pax, Providentia, Salus, Securitas, Victoria.
Presume-se que todas as personagens tenham sido executadas por Sequeira à excepção da figura feminina que representa a Concorditas e que se situa na parede sul, pois a mesma apresenta outra plasticidade ao nível da construção do rosto, e portanto pode muito bem ter sido executada por Joaquim Gregório da Silva Rato.
Perfectio, Tranquilitas, Docilitas, Sciencia, António Domingos Sequeira, 1807.
De salientar que a figura da Docilitas foi muito provavelmente inspirada numa figura feminina conhecida de Sequeira, talvez Mariana Benedita Verde. Demonstra tanto a sua excelente técnica como os longos anos de aprendizagem em Roma (a figura da Generositas apresenta influências da obra de Domenichino, em Grota Ferrara), correspondendo à sua primeira fase artística.
Na parede sul da sala temos: Generositas, Concorditas, Constantia e Diligentia. O sentido iconológico subjacente à concepção destas alegorias encontra-se alinhado com o tema desenvolvido no tecto da Sala das Audiências onde se exaltam as virtudes reais; as qualidades enunciadas demonstram igualmente o quanto é necessário que estas estejam presentes no monarca para que o povo português tenha no seu governante o “paradigma a seguir em todas as circunstâncias”, qualidades que o tornem afamado e digno de ser o representante de Deus na Terra.
Generositas, Concorditas, Constantia, Diligentia, António Domingos Sequeira, 1807.
Presume-se igualmente que algumas das personificações sejam consentâneas com a associação à identidade do Reino de Portugal, e a valorização das especificidades do Reino e as excepcionais qualidades dos portugueses: a nobreza, engenho, religião, honestidade, fidelidade, liberalidade, magnamidade, paciência, clemência e humanidade, temperança, sobriedade, abstinência e bondade... Logo, poder-se-á concluir que as virtudes expostas nas paredes da Sala das Audiências são também a extensão da personalidade dos lusitanos que se revêem no seu líder.
Série das Batalhas da Restauração
A Sala das Audiências é ainda constituída por uma sequência de oito cenas de batalhas, ligadas às Batalhas da Restauração, que se localizam por baixo das referidas alegorias. A sua concepção deve-se a Domingos Sequeira, tendo sido executadas de forma a imitar baixos-relevos, num efeito ilusionístico fantástico. Estamos perante cenas enlaçadas às principais batalhas que ocorreram posteriormente à Restauração de 1640, tais como a Batalha do Montijo (1643), a Batalha do Ameixial (1663) e a Batalha dos Montes Claros (1665), que consagraram definitivamente a independência de Portugal no contexto da Guerra da Restauração.
Fig. 61: Cena ligada à Série das Batalhas da Restauração, António Domingos Sequeira, 1807. Palácio Nacional de Mafra, Sala das Audiências, parede sul.
Série das Batalhas da Restauração, António Domingos Sequeira, 1807.
Desde a segunda metade do século XVIII que alguns artistas fizeram uso desta forma plástica nas suas obras pictóricas: o pintor veneziano Giuseppe Angeli (1712-1798) recorreu identicamente ao efeito tridimensional monocromático para a concepção de feitos militares gloriosos da História de Roma para a Villa Widmann em Mira.
A aceitação de Coriolanus como Comandante das Tropas Romanas, Giuseppe Angeli, 1760. Villa Widmann, Mira, Salão de Baile. Disponível em: https://www.wga.hu/art/a/angeli/5mira1.jpg
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RIPA, Cesare, Iconologia de Cesare Ripa Perugino Caballero de San Mauricio y de San Lazaro, en la que se describen diversas imagenes de Virtudes, Vicios, Afectos, Pasiones humanas, Artes, Disciplinas, Humores, Elementos, Cuerpos Celestes, Provincias de Italia, Ríos, Todas las partes del Mundo y otras infinitas matérias. Obra útil para Oradores, Predicadores, Poetas, Pintores, escultores, dibujantes y para todos los estudiosos en general, asi como para ideae Conceptos, Emblemas y Empresas, para disponer cualquier tipo de cortejo nupcial, funeral o triunfal, para representar poemas dramáticos, y para dar forma con los más apropriados símbolos a cuanto puede caber en el pensamiento humano, Siena, Herederos de Matteo Fiorimi, 1613.
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Nota
Coordenação Helder Carita
Texto: Sofia Braga, 2021.
Créditos fotográficos: Joaquim Rodrigues dos Santos, 2017 (Figs. 17, 31-33, 38, 40-46, 48, 53-60)